Informação profissional para a indústria de plásticos portuguesa

O fabrico aditivo como ferramenta de apoio no desenvolvimento de embarcações de recreio

Vitor Carneiro1, Orlando Silva2, Marco Marques3, Francisco Cálão4, Augusto Barata da Rocha3, Jorge Lino Alves3

1 Programa Doutoral MIT Portugal, Faculdade de Engenharia da Universidade do Porto
2 Mestrado Integrado em Engenharia Mecânica, Faculdade de Engenharia da Universidade do Porto
3 INEGI, Faculdade de Engenharia da Universidade do Porto 
4 NAUTAV Lda.
15/09/2021
O mercado náutico, particularmente o das embarcações de recreio, tem assistido a uma crescente procura nos últimos anos. Trata-se de um mercado muito competitivo, com novos modelos a surgirem todos os anos, equipados com tecnologias inovadoras e designs apelativos. O dinamismo deste segmento leva a que as empresas do setor tenham a necessidade de introduzir no mercado novos modelos de forma periódica.

Considerando este enquadramento, a empresa Nautav, fabricante de embarcações de recreio da marca Riamar, identificou, em parceria com a Universidade do Porto, uma oportunidade para desenvolver um novo modelo de embarcação de recreio, com design moderno e casco inovador. O processo de desenvolvimento envolveu a modelação 3D com SolidWorks e a impressão 3D da embarcação em escala reduzida. A visualização destes modelos permitiu à empresa ter uma ideia mais concreta da embarcação e adotar alterações que conduziram à solução final, que entrará agora na etapa de fabrico.

Enquadramento histórico

A criação de embarcações de recreio iniciou-se há centenas de anos. Um dos primeiros registos de utilização deste tipo de embarcação data do início do século XVII, na Holanda, altura em que foram criados barcos para fins desportivos e de lazer, para uso de nobres e reis, com o intuito de festejar o retorno de grandes navios de transporte de especiarias ao reino [1]. Porém, o sucesso comercial destas embarcações só surge em meados do séc. XIX, com o início das corridas náuticas na Europa e nos Estados Unidos da América [2]. Mais tarde, em 1932, com a descoberta da fibra de vidro, a produção deste tipo de barco aumenta significativamente, mas é interrompida pelo início da segunda guerra mundial. É no pós-guerra, mais concretamente a partir da segunda metade da década de 50, que esta indústria regista a maior evolução, com os construtores a adotarem a fibra de vidro em detrimento da madeira. O início dos desportos náuticos de alta competição ajudou a popularizar este compósito, graças às vantagens que o mesmo apresenta, tornando o barco mais leve e barato e consequentemente mais competitivo [3].

Em 1964, Manuel Alves Barbosa, uma referência da época no desporto náutico a nível Europeu, foi convidado pelo Rei de Marrocos, juntamente com uma comitiva portuguesa, para uma prova de motonáutica naquele país. Aí teve o primeiro contacto com um protótipo de uma embarcação que viria a definir a sua vida e o seu legado. O protótipo, apresentado por um entusiasta espanhol, Salvatore Sciacca, era de uma embarcação de recreio a motor construída totalmente em resina reforçada com fibra de vidro, um material muito pouco conhecido na época, principalmente na indústria náutica. Fascinado pela tecnologia e potencial deste novo método de construção naval - altamente resistente, sem manutenção e com uma versatilidade de inovação e construção em série sem igual -, Manuel Alves Barbosa iniciou as negociações que culminaram na criação do estaleiro Barbosa e Sciacca, Lda, em Aveiro. Este foi o primeiro estaleiro nacional a produzir embarcações em fibra de vidro e um dos primeiros a nível europeu, surgindo assim a Riamar-Ducauto, mais tarde, simplesmente, Riamar.

Historicamente, Portugal sempre foi reconhecido, a nível mundial, como um país com ligações muito fortes à náutica, desde o tempo dos descobrimentos, época que permitiu uma revolução da indústria marítima, até aos dias de hoje. No entanto, este setor, devido à crise financeira 2008, sofreu uma quebra considerável nas receitas provenientes de vendas, manutenção/reparação e construção de embarcações náuticas [4]. A Riamar não foi exceção, passou por sérias dificuldades e chegou quase à rutura. Em 2012, pelas mãos de Manuel Cálão e Francisco Cálão - genro e neto do fundador, respetivamente -, a empresa reinventa-se e renasce sob o nome Nautav, Lda. Beneficiando da nova tendência de crescimento do setor [4], a Riamar começa, assim, uma nova jornada até aos dias de hoje, mantendo alguns modelos com reestruturações completas, inovando ao nível da construção e dos acabamentos, bem como na criação de alguns modelos novos, em linha com as atuais tecnologias existentes na construção naval.

Em 2020, o surto de SARS-CoV-2, fez aumentar a procura de formas de isolamento em contexto recreativo, e, consequentemente, de embarcações de recreio [5]. É neste enquadramento de crescimento que a Nautav, em parceria com o DesignStudio da Faculdade de Engenharia da Universidade do Porto (FEUP), aposta no desenvolvimento de um novo modelo. Um modelo que pretende conjugar linhas vanguardistas com o design retro dos primeiros modelos da Riamar (Figura 1), aliados à mais avançada tecnologia de construção naval existente, tanto ao nível da qualidade do produto, como da redução do peso e dos custos de produção. A embarcação tem a data prevista de apresentação para janeiro de 2023, durante o salão náutico Boot Düsseldorf. Simultaneamente, servirá para reforçar a posição da Nautav no mercado nacional e internacional, com foco especial nos mercados europeus mais exigentes.

Figura 1. Modelos de design retro produzidos pela Riamar nos anos 70 (à esquerda o modelo 490 e à direita o modelo 700)
Figura 1. Modelos de design retro produzidos pela Riamar nos anos 70 (à esquerda o modelo 490 e à direita o modelo 700).

Desenvolvimento do produto

As embarcações de recreio são classificadas de acordo com a categoria de conceção, zona de navegação, tipo de casco e sistema de propulsão [6]. A embarcação que se pretende desenvolver para este projeto é de categoria C, devido à sua altura inferior a 2m; do Tipo 3 ou 4, dependendo do tamanho do tanque de combustível; o tipo de casco é com convés, pois dispõe de um pavimento estrutural completo com cobertura protegida por superestruturas, rufos ou gaiutas e é equipado com um sistema de propulsão a motor. A embarcação de recreio deste projeto está assim dividida em dois componentes principais, o casco e o convés (Figura 2).

Figura 2. Casco, convés e verdugo de uma embarcação de recreio
Figura 2. Casco, convés e verdugo de uma embarcação de recreio.

O casco é a principal estrutura da maioria das embarcações marítimas: permite ao barco flutuar e suportar as forças resultantes do peso da restante estrutura e tripulantes. A Figura 3 mostra uma embarcação semelhante (VanDutch) [7] com um casco em forma de V na proa, com efeito de tulipa. O convés é a cobertura permanente sobre o casco, que, para além da proteção contra os elementos exteriores, também fornece um reforço estrutural ao mesmo, permitindo resistir às forças de compressão provocadas pela água. Nos barcos de recreio, o convés é a zona de convívio e onde os passageiros ocupam a maior parte do tempo. É entre o casco e o convés que se localizam as cabines interiores, equipadas com camas e duche, local onde os passageiros repousam. O casco e o convés são unidos na zona do verdugo, uma faixa de borracha, madeira ou de aço inoxidável que tem como função absorver choques entre embarcações ou da embarcação com o cais/molhe.

Figura 3. Embarcação VanDutch 30 e o seu casco em forma de V com efeito tulipa [7]
Figura 3. Embarcação VanDutch 30 e o seu casco em forma de V com efeito tulipa [7].

Tendo em consideração o mercado-alvo, foram definidos pela empresa vários outros requisitos do projeto, dos quais se destacam:

  • A embarcação deve ter um comprimento (sem considerar o motor) da proa ao painel de popa de 6,5m, e uma largura máxima de 2,5m;
  • Possibilidade de utilizar diferentes conveses com o mesmo casco, permitindo criar uma linha de produtos e alargar a oferta;
  • Embarcação equipada com um motor fora de borda de 130 a 250hp;
  • O convés deve ser revestido com teka sintética, um revestimento antiderrapante sintético baseado na madeira de uma árvore com o mesmo nome, nativa da Ásia.
  • Espaço interior de repouso suficiente para uma cama de casal e casa de banho com chuveiro;
  • Sistema de molinete vertical de ancoragem, devido à intenção de manter o molinete escondido;
  • O casco deve ter um duplo step transversal, para criar uma zona de baixa pressão na cavidade, de forma a conseguir absorver o ar vindo das entradas laterais, obrigando à criação de uma ‘almofada’ de ar nesta zona (diminui as forças de arrasto que a água inflige no casco);
  • Acabamento do barco por gelcoat, de forma a evitar a pintura.

A modelação 3D da embarcação foi realizada com recurso ao software de modelação CAD 3D Solidworks, através de modelação por superfícies. Inicialmente, procedeu-se à modelação individual de cada um dos componentes da embarcação. Seguiu-se a assemblagem dos mesmos, e respetiva análise de folgas mínimas e máximas e interferências entre os diversos componentes, etc. (Figura 4). Adicionalmente, foram modelados os moldes e postiços do casco e do convés e realizada a respetiva assemblagem. Esta modulação permitiu simular o processo de desmoldagem dos mesmos, verificar a existência de interferências e as causas das mesmas e, assim, evitar e antecipar erros em fase de produção (Figura 5). Este foi um processo complexo, em que foram realizadas múltiplas iterações de modelação, assemblagem, simulação e análise até se obter o resultado pretendido.

Figura 4...
Figura 4. Processo de modelação 3D em Solidworks: a) modelação individual dos componentes; b) assemblagem dos componentes; c) análise de interferências e folgas dos diversos componentes.
Figura 5. Modelos 3D dos moldes e postiços do casco (a) e do convés (b) para simulação do processo de desmoldagem
Figura 5. Modelos 3D dos moldes e postiços do casco (a) e do convés (b) para simulação do processo de desmoldagem.

Ainda com recurso ao software foram realizadas análises estáticas e dinâmicas da embarcação recorrendo às ferramentas de simulação que este disponibiliza. A análise estática permitiu, por um lado, o cálculo da estabilidade longitudinal, com a obtenção da linha de água, o centro de gravidade (CG), e o centro de flutuação (CF) da embarcação. Por outro lado, permitiu o cálculo da estabilidade transversal com a obtenção do ângulo de adornamento máximo e respetiva linha de água. Para a análise dinâmica utilizou-se o add in Flow Simulation para a obtenção dos valores da distribuição de pressões da superfície do casco, a força de atrito (permite calcular a força de arrasto) e fração volúmica da água (permite simular a esteira) (Figura 6) [8].

Figura 6...
Figura 6. Simulações e análises estática e dinâmica da embarcação: a) cálculo do adornamento máximo e respetiva linha de água; b) distribuição de pressões no casco a uma velocidade de 16 nós; c) fração volúmica e simulação da esteira a uma velocidade de 16 nós.

Fabrico do protótipo

Para validação do design e da estrutura global da embarcação produziu-se um protótipo por impressão 3D, utilizando o processo de fabrico por extrusão de filamento fundido (FFF), à escala 1:20. Para a impressão do protótipo utilizou-se uma impressora Prusa i3 MK3S com um bico de 0.4mm alimentada com filamento de PLA (Polyactic Acid) de 1,75 ± 0.05mm de diâmetro, onde foi usada uma resolução de camadas de 0,15mm. Importa ainda destacar o facto de a embarcação ser impressa em duas partes separadas, já que a sua dimensão é superior à capacidade da mesa de impressão (Figura 7a e b). No total foram necessárias 64 horas de impressão e 610g de filamento. A tecnologia FFF permite a produção de peças para uma utilização final com boa qualidade em termos de resistência mecânica, térmica e química. Complementarmente, e pelo mesmo processo, produziram-se também os moldes (positivo e negativo) do casco e do convés à escala 1:40 (Figura 7c).

Figura 7. Impressão 3D por extrusão de filamento fundido da embarcação em duas partes separadas, à escala 1:20 (a e b) e dos moldes à escala 1:40 (c)...
Figura 7. Impressão 3D por extrusão de filamento fundido da embarcação em duas partes separadas, à escala 1:20 (a e b) e dos moldes à escala 1:40 (c).

Para a impressão 3D do motor foi utilizada a tecnologia PolyJet, que permite a produção de peças de paredes finas, geometrias complexas e detalhes intricados. Além disso, com uma única impressão é possível criar peças com movimentos, como é o caso do motor que possui dois eixos de rotação. O motor foi impresso num equipamento Eden 260V (Stratasys), com deposição de camadas de resina acrílica fotopolimeralizável de 16 µm. Foi utilizado o material Vero Grey, com um tempo total de impressão de 1,5 horas, com um consumo de 76g de material de construção e 51g de material de suporte (Figura 8).

Figura 8. Impressão 3D do motor da embarcação através da tecnologia PolyJet
Figura 8. Impressão 3D do motor da embarcação através da tecnologia PolyJet.

As sucessivas iterações realizadas ao protótipo e respetivos moldes para o fabrico do casco permitiram chegar ao modelo final, validar o projeto realizado e avançar para o fabrico do casco (Figura 9).

Figura 9. Protótipo produzido por fabrico aditivo
Figura 9. Protótipo produzido por fabrico aditivo.

A produção do protótipo por fabrico aditivo trouxe vantagens ao processo de desenvolvimento. Com este método, mais rápido e menos dispendioso do que os métodos tradicionais (CNC, injeção em moldes, entre outros), o protótipo criado é fiel ao modelo 3D, já que são replicados os mínimos detalhes. Tal permitiu analisar detalhadamente erros de conceção e recolher rapidamente feedbacks importantes junto dos elementos da empresa, que dificilmente se conseguiriam apenas com a visualização do modelo 3D num ecrã. Apercebendo-se das potencialidades do fabrico aditivo, a Nautav pretende utilizar este protótipo para demonstração no próximo Salão Náutico de Düsseldorf e, assim, obter as reações do público-alvo ao novo modelo, sem que para tal tenha de fazer um grande investimento.

Conclusões

Neste projeto foi concebida e desenvolvida uma embarcação de recreio, tendo sido focada apenas uma parte do processo de desenvolvimento do produto, nomeadamente na criação de modelo digital tridimensional, análise estática e dinâmica do modelo e produção de protótipo por fabrico aditivo. O protótipo obtido demonstra a potencialidade da utilização do fabrico aditivo no apoio ao desenvolvimento de embarcações de recreio. Por um lado, a flexibilidade, rapidez e baixo custo desta tecnologia são mais-valias no apoio ao desenvolvimento, por outro, o elevado nível de detalhe e as boas caraterísticas mecânicas conferidas às peças permitem que as mesmas possam ser usadas pelo consumidor, de forma a obter o seu feedback.

Referências

[1] G. Kobbé, “A Summary of Yachting History”, Lotus Mag., vol. 5, no. 8, pp. 505–512, 1914.

[2] F. Boats, “The History of Recreational Boats”, Formula Boats, 2018. [Online]. Disponível: https://www.formulaboats.com/blog/history-of-boating/ [Acesso: 10-outubro-2020].

[3] S. Mitchell, “The Birth of Fiberglass Boats”, Good Old Boat, vol. 2, no. 9, 1999.

[4] P. Araújo, “Indústria naval portuguesa renasceu”, Dinheiro Vivo, 2017. [Online]. Disponível: https://www.dinheirovivo.pt/empresas/industria-naval-portuguesa-renasceu-12854136.html [Acesso: 10-Oct-2020].

[5] M. Modi, “How yachting escaped the Covid crisis by offering a ticket out of the pandemic”, Monaco Tribune, 2020. [Online]. Disponível: https://www.monaco-tribune.com/en/2020/11/how-yachting-escaped-the-covid-crisis-by-offering-a-ticket-out-of-the-pandemic/ [Acesso: 10-dezembro-2020].

[6] DGRM, “Embarcações de Recreio”, 2018. [Online]. Disponível: https://www.dgrm.mm.gov.pt/am-nc-embarcacoes [Acesso: 10-outubro-2020].

[7] VanDutch, “VanDutch 30”, 2018. [Online]. Disponível: https://www.vandutch-marine.com/vandutch-30/ [Acesso: 10-outubro-2020].

[8] O. Silva, “Design e projeto de uma embarcação de recreio – casco e convés”, Tese de Mestrado Integrado em Engenharia Mecânica, Faculdade de Engenharia da Universidade do Porto, 2021.

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